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Foto do escritorStefany Tagliatella

Entre Memória e Esquecimento: A Busca do Eu em 'Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças'

A relação entre identidade e tempo sempre fascinou a humanidade, especialmente no contexto da vida moderna, onde o fluxo acelerado do presente muitas vezes nos distancia de quem somos. O filme Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças, dirigido por Michel Gondry, nos leva diretamente ao centro desse dilema. Através de uma montagem que fragmenta memórias e embaralha a narrativa, o filme nos faz questionar: o que resta de nós quando nossas lembranças se esvaem? Em uma era marcada pela fragmentação e pela incerteza, o apagamento seletivo de memórias oferece alívio ou nos aprisiona ainda mais?

O conceito de identidade e tempo na montagem do filme "Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças" se expressa por meio do debate sobre o conceito de pós-modernidade.  Tal conceito será aqui debatido com base no texto de Fredric Jameson, onde o mesmo desdobra a relação sobre a inconsistência da identidade na pós-modernidade devido a inabilidade de retenção da memória, onde o “eu” se perde na busca incansável “por si mesmo” em meio a saturação do passado que nos coloca em um eterno presente sem perspectivas para o futuro. Nessa expressão do capitalismo tardio, memória, esquecimento e luto, contornam os traços de identidade do “eu”, em uma interação esquizofrênica (não do ponto de vista psicológico, mas em relação ao embaralhamento dos signos e da inconsistência -  na percepção temporal - que segundo o próprio autor tem a especificidade da experiência pós-moderna do espaço e do tempo) com a realidade. Essa expressão é refletida na montagem do filme, onde a relação de cada um desses conceitos é comunicada no encaixe das cenas e no modo com o qual o espectador é apresentado à narrativa; no filme, Joel, o personagem que guia a maior parte da história, recorre a um procedimento técnico que apaga as memórias, eliminando aquilo que não parece benéfico para a mente que sofre com o luto. Tal procedimento aprisiona Joel em sua mente, onde ele revive o passado de forma esquizofrênica, embaralhando a linha temporal de sua própria história.

Para compreensão da perda do “eu” na busca “por si mesmo”, é necessário uma análise do contexto no qual a pós-modernidade se encontra no tempo. Na transição do séc XIX para o séc XX, a modernidade se expressa enquanto uma eterna transitoriedade, onde tudo é efêmero, culminando em grandes mudanças e guerras de modo brutal (primeira e segunda guerra mundial). Na segunda metade do séc XX, nos deparamos com o oposto da utopia vislumbrada na modernidade, tendo uma bagagem traumática junto a um olhar nostálgico (que não constrói uma memória histórica coletiva), onde o mesmo se volta para trás, não refletindo verdadeiramente sobre passado se mantendo em “[...] um presente diluído e expandido que absorve e dissolve em si tanto o passado como o futuro.” Dessa forma a pós-modernidade se encontra em um ambiente traumático, envolto de memórias nostálgicas, esquecimento seletivo e luto. 

É com esse contexto pós-moderno, que a narrativa de “Brilho Eterno de Uma Mente sem Lembranças”  se apresenta, expondo a forma como o “eu” se embrenha na busca “por si mesmo”, evidenciando “[...]um sintoma alarmante e patológico de uma sociedade que se tornou incapaz de se relacionar com o tempo e a história.” 


(Michael Gondry, Brilho Eterno de Uma Mente sem Lembranças, 2004 - 00:49:22)


No filme, acompanhamos a história de pessoas que buscam por apagar lembranças que causam certo desconforto e inquietação, na leda tentativa de melhorarem as dores que o viver traz, como se o lampejo de suas memórias ofuscasse as chances de sua sobrevivência, não alcançando a compreensão de que “O sentimento de identidade depende da nossa sensação da persistência do “eu” e de “mim” através do tempo.”. Iludidos com a ideia de libertação do sentimento de luto que o procedimento de apagar as memórias promete, Joel e Clementina, dão fim ao que viveram juntos das suas mentes, mas o que sobrevive de seus pensamentos brinda-nos com uma narrativa reflexiva mais profunda do que se imagina de um mero amor que não deu certo. 

A forma como o “eu” se relaciona com o tempo é comunicada por meio da montagem, utilizando da técnica atonal, o filme brinca com os anseios dos personagens e embaralha as resolução aos olhos do público, que precisa se manter atento para encaixar as informações exibidas. Em filmes onde os anseios pós-modernos conseguem ser sentidos, a montagem atonal consegue, além de entoar o ritmo do filme, nos transmitir a relação do “eu” com a história ali contada e o tempo, já que a tal técnica reúne no seu método as montagens rítmica, tonal e métrica, manipulando o tempo do plano, ideias e emoções, a fim de causar no público um impacto de proximidade. E no caso em específico do filme aqui citado, uma montagem que se inicia, lenta e reflexiva, em tons melancólicos e com momentos de respiração e observação, e muda para uma montagem rápida e dinâmica, fundindo o presente/realidade com o passado/memória.  

O passado, em todo o tempo no filme, é visto com um olhar nostálgico “[...] como se, por alguma razão, fôssemos hoje incapazes de focalizar nosso próprio presente[...]”. No caso evidente, o protagonista reluta em lidar com a própria história, ao mesmo tempo em que se sente confortável com o passado, olhando para trás sempre com nostalgia, nunca refletindo sobre a sua vivência (seus romances). Essa relação com o tempo, é manifestada em dois momentos narrativos: primeiro, em 00:03:27, quando Joel discorre o pensamento de voltar ao que era comum, isso por se tratar de uma nostalgia sem crítica do que ele abandonou, Fisher faz um  comentário sobre o filme “Amnésia” que também cabe a esse comportamento do protagonista aqui exposto - “Tudo o que for novo aparece como hostil, fugaz, impossível de navegar, e o paciente refugia-se na segurança daquilo que já é velho e conhecido. Incapacidade de formar novas memórias: uma definição concisa do impasse pós-moderno”. O segundo momento, é em meio a esquizofrenia vivida pelo personagem, quando o mesmo opta por interromper o procedimento, já que o retorno ao passado de suas memórias, parece expressamente vívidos e reais.



Em meio a melancolia causada por essa atração ao passado, o protagonista se desconhece, fazendo com que a sua busca pelo “eu” se perca em meio às sensações (expressas e fortes) que revisitar as memórias lhe causam. Mais do que recuperar ‘o amor’, Joel parece lutar por pedaços de si, que começam a se perder junto ao apagamento de suas memórias ao lado de Clementina. Em meio ao procedimento, Joel percebe que para além de apagar os erros e momentos amargos, ele também está apagando vivências, experiências, o lado bom de tudo o que suportou. Já que o “eu” se mostra incapaz em permanecer no presente, a sua reflexão sobre o “agora” só acontece quando ele se torna passado, sendo um lugar inalcançável, o que gera um sentimento de frustração e medo, paralisando quem o sente, desfazendo a fixação do “eu” e tornando [...] a busca desesperada do protagonista para reconquistar sua identidade” em uma “[...] uma contínua fuga de qualquer sentido do ‘eu’ fixo”.  

A montagem do filme, realizada de maneira embaralhada, inicia o filme tendo como primeira cena, não o ponto inicial dessa narrativa, nem o meio ou o final, mas um ponto específico, a conclusão do procedimento que acompanhamos nos próximos minutos subsequentes ao startar do filme. A cena é simples, o dia amanhecendo, Joel acordando em seu apartamento, confuso, melancólico e vazio.  O que decorre desse ponto, é um momento de inquietação pelo assombro residual de suas memórias apagadas na noite anterior; a latência de uma dor já curada, a solidão de um amor recém magoado, a saudade de algo que não se tem memória. O segundo “primeiro encontro” dos protagonistas ocorre, com distâncias temporais e similaridade de acontecimentos, e acompanhamos os reencontros não conscientes deles.  Após os primeiros 17 minutos, nos deparamos com uma cena que causa estranhamento (não sendo o primeiro elemento a ocasionar tal sentimento), isso decorre por ela não seguir a linearidade do que se apresentou até aquele momento, porque realmente não é uma sequência, mas um momento do passado, que não é localizado com precisão. 

Desse ponto em diante, a história é condensada e materializada em lampejos da memória de Joel. Onde passado, presente e futuro não se firmam, mas se embaralham, em uma mescla de sentimentos e resoluções, causando no público o sentimento de confusão e desconforto, temperados com curiosidade e identificação. A mistura entre a realidade vivida pelos ‘apagadores’ acaba por trombar com a esquizofrenia vivida por Joel dentro de sua própria mente.  

“[...] como as continuidades temporais são quebradas, a experiência do presente torna-se assoberbante e poderosamente vivida e “material”: o mundo surge ante o esquizofrênico com alta intensidade, contendo uma misteriosa sobrecarga afetiva, resplandecendo de energia alucinatória."


Em determinado ponto da narrativa, vemos Mary, uma das personagens coadjuvantes dessa história, brindando e entoando uma citação de Nietzsche - “Abençoados sejam os esquecidos, pois tiram o melhor de seus equívocos.” . Citação essa que finca as crenças dos personagens dessa história que vemos ser montada de maneira nada sequencial.


(Michael Gondry, Brilho Eterno de Uma Mente sem Lembranças, 2004 - 00:44:10)


Crença capaz de demonstrar que na pós-modernidade “O passado deixou de ser visto como um enorme reservatório de onde os seres humanos podiam resgatar lições morais e políticas”, passando a ser encarado apenas como restos de traumas, causando uma busca desenfreada por uma inocência perdida, como se o esquecimento e o lapso temporal fosse a única fuga capaz para apaziguar a mente conturbada daquele que vive em luto.  Os protagonistas, em busca dessa inocência, decidem recorrer à tecnologia, apagando de si as memórias que trariam a frustração e o descontentamento no futuro; futuro esse que é constantemente negado por eles, aprisionando-os em um constante presente - “um tempo suspenso entre um passado que não se pode superar e um futuro negado, entre um ‘passado que não quer passar’ e um futuro que não pode ser inventado ou previsto”. 

A montagem se mantém rítmica, mesclando a realidade e o sonho, onde Joel segue sua jornada na tentativa frustrante de retenção de suas memórias, enquanto os apagadores migram em um vórtex de reflexões sobre os assombros do passado no presente. No qual existem momentos poéticos de mescla entre as duas narrativas paralelas, as reflexões invadindo as memórias e o esquizofrênico buscando sua liberdade no presente, em uma falha tentativa de se desprender do passado e abrir os olhos no agora - “O pouco tempo que nos separa do vazio tem a consistência de um sonho.” 


(Michael Gondry, Brilho Eterno de Uma Mente sem Lembranças, 2004 - 00:44:10)

“Eu quis falar, e, como se as palavras carregassem o peso de mil sonos, como parecendo não ver, meus olhos vagarosamente se fecharam.” (Sobrevivencia dos Vaga-Lumes) 


Nesse ponto, em que o protagonista busca se desligar do procedimento do esquecimento, vemos também, a história paralela tendo seu ponto de virada, onde toda a exaltação da amnésia se mostra ineficiente, visto que os coadjuvantes se vêem condenados a repetir seus erros - “Os [...] ‘lampejos de esperança’ - desapareceram com a inocência condenada à morte” . Aqui evidenciamos que “A inocência é um erro, a inocência é uma falta, compreendes? E os inocentes serão condenados, pois não têm mais o direito de sê-lo.[...] Há milhares de inocentes [...] através do mundo que preferem se apagar da história ao invés de perderem sua inocência.” .

A crença fundada dos personagens, que em determinado momento da narrativa é corroborada pela citação do filósofo alemão, se mostram ao fim da jornada, ineficiente - As doutrinas de Nietzsche têm isso de estranho: não se pode segui-las. Elas se fazem preceder de lampejos imprecisos, deslumbrantes, mas com frequência nenhum caminho conduz à direção indicada.” 

Enquanto os coadjuvantes lidam com esse impasse, o protagonista, em meio a sua particular esquizofrenia, decide aproveitar as suas memórias sem mais fugir delas. Vemos os primeiros momentos do seu relacionamento com Clementina, sua conexão com o outro e o respiro que dura pouco, como se por um lampejo luminoso, por breves instantes, o “eu” tivesse surgido por completo na busca “por si mesmo”, como a aparição de vaga-lumes.  


(Michael Gondry, Brilho Eterno de Uma Mente sem Lembranças, 2004 - 01:26:32)


Nesses últimos instantes, o protagonista também se coloca na posição de assombrado, deixando resquícios das memórias apagadas para trás, evidenciando a Sobrevivência dos signos ou das imagens, quando a sobrevivência dos próprios protagonistas se encontra comprometida”, visando assim, saciar o desejo sobrevivente dentro de si.

Esse assombro, é o alicerce das ações que Joel tem na manhã após a conclusão do procedimento técnico que apaga suas memórias, o que o faz ser impulsivo, quando o mesmo não se reconhece assim. Assombrar, então, pode ser interpretado como um luto fracassado. Trata-se de recusar a desistir do fantasma ou - e isso às vezes pode significar a mesma - à recusa do fantasma em desistir de nós.” 


(Michael Gondry, Brilho Eterno de Uma Mente sem Lembranças, 2004 - 01:30:33)


A vontade do protagonista sobrepõe suas tentativas de morte, sua busca pelo esquecimento e pela amnésia. O desejo mantém os fantasmas enterrados em seu passado, de modo a mexer no seu futuro, ao ponto de se envolver novamente com o objeto de sua angústia, envolvendo Joel e Clementina em uma vivência melancólica. - “Mas, enquanto o luto é o lento e doloroso desligamento entre a libido e o objeto perdido, na melancolia a libido permanece ligada ao que desapareceu” 

E aqui vemos a ação dos coadjuvantes influenciar a jornada dos protagonistas, quando ambos são notificados com suas memórias apagadas, tornando o momento confuso e desconfortável, obrigado-os a encarar algo do qual não se relacionam mais, [...] nas circunstâncias mais diversas, aparece bruscamente de improviso, e desaparece novamente em outras condições misteriosas’, nalgum lugar na brecha aberta entre memória e desejo. Seria ainda preciso que a memória fosse “uma força e não um fardo”.” Juntos, os protagonistas optam por aceitar o que já aconteceu, seguindo em frente rumo a um futuro incerto e se dando uma nova oportunidade de vivenciarem essa busca do “eu” “por si mesmo”. 

A montagem do filme ajuda a contar essa história, reforçando através dessa linguagem dialética, os conceitos pós-modernos que embrenham os vincos da obra. Para  entender  a  montagem  como  uma  etapa  fundamental  da  criação  de  sentidos, precisamos compreender que cinema é acima de tudo, linguagem, capaz de comunicar com seus planos, fotografia, trilha sonora e montagem, um amontoado de expressões e posições. Tendo na montagem as imagens, os paradoxos e estranhamentos criados pelo ator na cena. O enquadramento, o anacronismo e a epígrafe estão sendo usados como elementos de questionamentos. O deslocamento, o reenquadramento, o retardar e o desmontar (o tempo, ação, drama, personagem e música); a interrupção da imagem (de imagem, episódios e ações); a fuga para a infância, o enrosco com o passado confortável (sequência épica) usados como elementos básicos do discurso. A desordem dialética, as personagens e seus paradoxos (memória, esquecimento e luto), ajudam a compor o discurso da montagem. A expressividade da saturação do passado que coloca as personagens em um eterno presente sem perspectivas para o futuro. O desmontar da ordem espacial e temporal, expressa em “Brilho Eterno de Uma Mente sem Lembranças", reforça todo o discurso de localização de temporalidade dos personagens, suas crenças e a relação que tem com o tempo e a identidade. 




Bibliografia: 

DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes / Georges Didi-Huberman ; Vera Casa Nova, Márcia Arbex, tradução ; Consuelo Salomé, revisão. Belo Horizonte : Editora UFMG , 2011.

FISHER, Mark. Realismo capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo?. Tradução Rodrigo Gonsalves, Jorge Adeodato, Maikel da Silveira. - 1. Ed. - São Paulo: Autonomia Literária, 2020

FISHER, Mark. Fantasmas da minha vida: escritos sobre depressão, assombrologia e futuros perdidos. Tradução Guilherme Ziggy. - São Paulo, SP: Autonomia Literária, 2022.

JAMESON, F. Pós-modernidade e sociedade de consumo. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, nº 12, pp.16-26, jun. 85, tradução de Vinicius Dantas.


Filmografia:

Michael Gondry, Brilho Eterno de Uma Mente sem Lembranças, 2004 






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1 commentaire


Lucas Buzzo
Lucas Buzzo
02 déc.

Ótimo texto! Esse filme é belíssimo. Um dos mais importantes pra mim. É muito significativo pra mim! Lembro do modo como abordam a melancolia de um fim de relacionamento, machuca. Dói. Mas depois passa. Lembro como isso bateu em mim a primeira vez que vi.

Deixo aqui um questionamento para a autora do texto:

Você seria capaz de apagar suas memórias ruins?

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