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Foto do escritorStefany Tagliatella

A Fotografia como Expressão da Solidão na Modernidade

A solidão, um tema profundamente entrelaçado com a modernidade, é explorada na obra “O Pintor da Vida Moderna” de Charles Baudelaire. Aqui, vamos mergulhar nessa relação entre o sentimento de isolamento e o ritmo frenético da vida moderna, observando como essa conexão pode se manifestar na arte da fotografia. A técnica de 'longa exposição' exemplifica essa interseção, onde o tempo e a luz são manipulados para capturar algo além do visível imediato. Para enriquecer essa análise, traremos as reflexões de Walter Benjamin em “Pequena História da Fotografia” e “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica”, oferecendo uma perspectiva mais profunda sobre como a arte fotográfica dialoga com a solidão e o espírito da modernidade.

Charles Baudelaire, um dos mais influentes poetas e críticos franceses do século XIX, explorou os aspectos essenciais da experiência moderna, categorizando o movimento moderno que surgia como sendo “o transitório, o efêmero, o contingente [...]”. Baudelaire foi um observador atento da vida urbana e da transformação social decorrente da industrialização e do progresso tecnológico. O surgimento da fotografia faz parte desse progresso tecnológico industrial que é tão característico da modernidade. A relação entre o surgimento da ciência fotográfica e o pensamento dos autores destaca as interconexões entre a técnica fotográfica, a modernidade e a reflexão crítica sobre a arte. 

Walter Benjamin, em seu ensaio “A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica”, explorou as implicações da reprodução mecânica, incluindo a fotografia, na arte e na cultura. Ele reconheceu que a fotografia, como uma forma de reprodução técnica, transformou profundamente a relação das pessoas com a arte, Benjamin também discutiu a relação entre a fotografia e a modernidade, argumentando que a fotografia era uma resposta ao desejo da sociedade moderna de capturar e documentar a realidade de forma objetiva. Ele observou que a fotografia tinha o potencial de revelar aspectos ocultos da realidade e oferecer uma perspectiva nova e objetiva sobre o mundo. Nesse contexto, Baudelaire desempenha um papel importante como uma figura que testemunhou o surgimento da fotografia e refletiu sobre suas implicações artísticas e culturais. Baudelaire, em seu ensaio “O Pintor da Vida Moderna”, que aqui centralizamos para debater o sentimento de solidão na modernidade, abordou a relação entre a arte e a modernidade, explorando a busca do artista em capturar a essência da vida moderna em sua obra. Embora Baudelaire tenha expressado certa desconfiança em relação à fotografia como uma forma de arte, enfatizando sua natureza mecânica e objetiva, sua reflexão crítica sobre a modernidade e o papel do artista na sociedade influenciou a compreensão da fotografia como uma forma de expressão artística e documental; “Para que toda Modernidade seja digna de tornar-se Antiguidade, é necessário que dela se extraia a beleza misteriosa que a vida humana involuntariamente lhe confere” exposição que abraça a argumentação de Benjamin, quando o pensador afirma que “A maneira pela qual a percepção humana se organiza - o meio em que ocorre - não é apenas naturalmente, mas também historicamente determinado.

Assim, a fotografia, como uma nova forma de reprodução técnica, surge como um tema de reflexão tanto para Benjamin quanto para Baudelaire. Ambos os pensadores abordaram as implicações da técnica fotográfica na arte, na cultura e na experiência moderna. Enquanto Benjamin examinou as mudanças trazidas pela reprodução técnica, incluindo a fotografia, Baudelaire refletiu sobre o impacto da modernidade na busca do artista por uma expressão autêntica; expressão essa, justificada por Benjamin, através do ritual que cerca a obra observada. - “O valor singular da obra de arte “autêntica” fundamenta-se sempre no ritual”. Suas obras contribuem para a compreensão crítica da fotografia como uma forma de expressão que reflete e responde às demandas e características da sociedade moderna.

Baudelaire capturou a essência da modernidade em sua obra poética, especialmente em seus ensaios críticos, como “O Pintor da Vida Moderna”. Para o autor, a modernidade estava intimamente ligada à vida nas cidades, com todos os seus elementos e contradições, Baudelaire retratou a modernidade como uma realidade complexa e contraditória, em que a beleza e o sublime coexistem com o grotesco e o decadente. Além disso, Baudelaire explorou a noção de efemeridade na modernidade, destacando a transitoriedade das experiências e a sensação de perda que acompanha o tempo presente. Ele descreveu a modernidade como um fluxo incessante de mudanças e novidades, que muitas vezes deixava o indivíduo em um estado de inquietação e ansiedade 

A mistura da inquietação e a ansiedade exaltam a solidão, uma condição humana profundamente intrincada e inerente à experiência da modernidade. Ela permeia as camadas da existência humana, revelando-se em diferentes contextos e manifestações. O ensaio de Baudelaire, trata da busca do artista em capturar a essência da vida moderna e transmiti-la através de sua arte. Um aspecto crucial dessa reflexão é a percepção da solidão como uma condição inerente aos indivíduos imersos na vida urbana e na modernidade. Como citado no trecho escolhido para o desenvolvimento do texto. 

 “Assim ele vai, corre, procura. O que? Certamente esse homem, tal como o descrevi, esse solitário dotado de uma imaginação ativa, sempre viajando através do grande deserto de homens, tem um objetivo mais elevado do que a de um simples flâneur, um objetivo mais geral, diverso do prazer efêmero da circunstância. Ele busca esse algo, ao qual se permitirá chamar de Modernidade; pois não me ocorre melhor palavra para exprimir a ideia em questão. Trata-se, para ele, de tirar da moda o que esta pode conter de poético no histórico, de extrair o eterno do transitório”. (Charles Baudelaire, O Pintor da Vida Moderna. In “A modernidade de Baudelaire”: org. Teixeira Coelho. São Paulo, Paz e Terra, 1988, p. 173).

Baudelaire descreve o pintor moderno como um observador solitário, afirmando que "o pintor tem a multidão como sua amante" – uma expressão que aponta para a solidão mesmo no meio da efervescência urbana. Essa solidão é reflexo do movimento humano na modernidade, em que as pessoas são inseridas em uma constante dinâmica social, mas ainda se sentem isoladas e distantes umas das outras. A agitação das ruas e o fluxo incessante de pessoas podem agravar o sentimento de desconexão, além da sensação de inconstância e não pertencimento, visto que o mundo parece correr em um tempo que não nos mantém fixos nele, na vida, no outro. O indivíduo moderno muitas vezes se sente como um estranho em meio à multidão, ansiando por uma conexão autêntica que parece inatingível. Assim, o homem moderno sente-se sumir em meio a cidade, onde apenas os prédios, máquinas e ruas são realmente vistos, mas o ser, se perde. 

Nesse sentido, o artista consegue dialogar de forma poética sobre os sentimentos sociais diante ao presente, registrando o tempo para posteridade e evidenciando os traços históricos que tornam a vivência humana, uma vivência documentada, onde os fatos são, também, sentidos. Baudelaire traça o seguinte comentário sobre alguns pintores do séc XVIII: “O passado é interessante não somente pela beleza que dele souberam extrair os artistas para quem constituía o presente, mas igualmente como passado, por seu valor histórico”. O que, uma fotografia, acaba por executar esse papel, de maneira eficiente, usando as palavras de Benjamin, “Só a fotografia revela esse inconsciente ótico, como só a psicanálise revela o inconsciente pulsional”.

Charles Baudelaire, um homem moderno, vivenciou o nascimento da fotografia, sendo testemunha de evidências históricas sobre um avanço artístico, que em seu nascimento, já conseguia captar a realidade recortada da humanidade. Nesse contexto, a fotografia desempenha um papel significativo, como destacado por Walter Benjamin em “Pequena História da Fotografia”. Benjamin examina a evolução da fotografia e sua influência na cultura e na percepção humana, ressaltando como a técnica fotográfica captura a essência do efêmero e da transitoriedade da vida moderna. A fotografia permite congelar o movimento e imortalizar momentos fugazes, oferecendo ao espectador a oportunidade de contemplar a solidão presente na modernidade. A imagem fotográfica, ao mesmo tempo em que é uma representação objetiva da realidade, também é uma construção subjetiva do fotógrafo e do observador. 

Como exemplo, observemos, “Boulevar du Temple”, a primeira foto tirada por um daguerreótipo, uma das primeiras formas de fotografia, popularizado em meados de 1839, essa, em específico, registrou uma movimentada rua de Paris, e também, foi a primeira fotografia com pessoas da história, por um instante fortuno, um engraxador e o seu cliente que se mantiveram tempo suficiente no mesmo local para serem também personagens desta imagem e a tornarem algo único, claro que seu registro é fugaz, e suas formas, instáveis - “[...] a técnica mais exata pode dar às suas criações um valor mágico que um quadro nunca mais terá para nós”. O aparato, necessitava de longo tempo de exposição, dessa forma, aquilo que se movimentava, acabava não sendo registrado, passando a sensação de solidão, que Baudelaire tanto evidencia em seu texto, para ele o movimento e a instabilidade da modernidade causavam o que o daguerreótipo registrou, não intencionalmente, mas como parte do processo de evolução de uma arte que se mostra capaz de capturar a humanidade e suas sensações. 


Louis Daguerre, Boulevard du Temple, 1838. Fonte: Wikipedia.


“[...] o observador sente a necessidade irresistível de procurar nessa imagem a pequena centelha do acaso, do aqui e agora, com o qual a realidade chamuscou a imagem, de procurar o lugar imperceptível em que o futuro se aninha ainda hoje em minutos únicos, há muito extintos, e com tanta eloquência que podemos descobri-lo, olhando para trás.” (BENJAMIN, 1985, p. 94)

O processo de capturar uma imagem por meio de um daguerreótipo era um processo longo e solitário, demandava um ambiente controlado, com exposições prolongadas e manipulação química delicada. Esse processo solitário pode transmitir uma sensação de solidão tanto para o fotógrafo quanto para o sujeito sendo fotografado, isso porque, a ideia de ser registrado por um aparato moderno, que além de qualificar o sujeito dentro da sociedade como um alguém pertencente a uma classe social que obtinha a possibilidade de ocupar seu tempo pousando por horas, também, enquadrava o sujeito em um local solitário, que na modernidade, já vinha sendo valorizado de forma política, quanto mais sozinho, mas rico o sujeito. O que imprime uma aura no resultado, “[...] essas operações da câmera constituem um conjunto de procedimentos que permitem à percepção coletiva apropriar-se dos modos de percepção individuais [...]”.

As fotos tiradas com daguerreótipos muitas vezes apresentavam uma estética única, com tons suaves e um ar de melancolia; atrelado a necessidade de tempos de exposição longos, o que tornava dificultosa a captação de objetos em movimento e podem evocar um sentimento de solidão que o autor, tão bem expôs em seu texto crítico, por várias razões relacionadas à sua estética e contexto histórico: “Em suma, todas as possibilidades da arte do retrato se fundam no fato de que não se estabelecerá ainda um contato entre atualidade e a fotografia”

Nos primórdios da fotografia, as câmeras eram menos sensíveis à luz e os tempos de exposição eram naturalmente mais longos, o que tornava o processo fotográfico demorado e delicado. Aquele que pousava, necessitava de certa paciência, menos do que seria preciso para pintar um quadro, mas tempo o suficiente para trazer a obra criado por meios tecnológicos, uma aura melancólica e solitária. Um dos exemplos mais famosos de fotografia de longa exposição é a série de retratos conhecida como “The Disruption Portraits”, capturada entre 1843 e 1847 pelos fotógrafos David Octavius Hill e Robert Adamson, sendo os primeiros a produzir um grande corpo de fotografias artísticas autoconscientes, além de representarem um momento significativo na história da fotografia, oferecem uma rica oportunidade para relacionar-se com as ideias de Walter Benjamin e Charles Baudelaire.


               Hill and Adamson, Newhaven Fishwives, 1845. Fonte: The Met Museum.


A imagem das duas moças de aventais faz parte de um projeto de documentário social – o primeiro em fotografia – que a equipe realizou em New Haven e outras pequenas cidades pesqueiras perto de Edimburgo. Como o processo inicial de negativo em papel não registrava os pescadores no mar, devido a movimentação das ondas, que impedia o processo de longa exposição ser efetivo no registro do momento secular, Hill e Adamson se concentraram nas peixeiras; vestidas com aventais listrados tradicionais e anáguas de lã, as mulheres lançavam iscas, descarregavam e limpavam a pesca, carregavam as cestas de salgueiro carregadas colina acima até Edimburgo e vendiam seus peixes. Na era da Revolução Industrial, e seus consequentes problemas sociais que eram agravados pela modernidade fugaz da época, o olhar esvaziado e fugidio das personagens retratadas, opção causada pela necessidade humana de lubrificar os olhos, trouxe para o trabalho a reflexão sobre a solidão vivenciada pelos modernos. “O rosto humano era rodeado por um silêncio em que o olhar repousava”. Seria a fuga do olhar a expressão de uma época inconstante e inóspita para a humanidade que aprendia a correr em uma velocidade e tempo ainda descompassado pelas máquinas?  

Em seu ensaio “Pequena História da Fotografia”, Walter Benjamin examina a evolução da fotografia e destaca a capacidade dessa arte de capturar detalhes íntimos e objetivar a realidade de maneira precisa. Benjamin também enfatiza o aspecto reprodutível da fotografia, que permite sua disseminação em massa e, consequentemente, desafia a noção de singularidade e aura que antes cercavam a obra de arte. Ao analisar "The Disruption Portraits", percebemos como esses retratos capturam a individualidade dos sujeitos e fornecem um vislumbre da vida e da sociedade da época. Hill e Adamson utilizaram câmeras e técnicas pioneiras da época, como o daguerreótipo, para registrar esses retratos com uma notável precisão e detalhamento. Cada sujeito é retratado com uma clareza impressionante, revelando suas características faciais, roupas e expressões. Essas imagens fotográficas são um exemplo poderoso do potencial da fotografia em capturar a realidade de maneira objetiva, como Benjamin discute em seu texto.



Hill and Adamson, Torre de Bonaly 1843 -1847 Fonte: MoMA

                                                                                

Hill and Adamson, Ponte sobre Kenley Burnside, 1843 -1847, Fonte: Getty.edu 

                                                                          

Além de documentar a realidade, “The Disruption Portraits” também evoca uma sensação de solidão e introspecção. Esses retratos individuais e de grupo mostram as pessoas em poses sérias e expressões pensativas, sempre encarando pontos cegos, sem trocar olhares entre si — “O próprio procedimento técnico levava o modelo a viver não ao sabor do instante, mas dentro dele; durante a longa duração da pose, eles por assim dizer cresciam dentro da imagem”. A iluminação suave e a composição cuidadosa transmitem uma atmosfera melancólica, como se os retratados estivessem imersos em suas próprias reflexões, separados de suas conexões sociais, divididos dentro de uma sociedade que tencionava os valores que caracterizam o homem como um ser social - “Cada época tem seu porte, seu olhar e seu sorriso”. Essa sensação de solidão e intimidade reflete o sentimento descrito por Baudelaire em "O Pintor da Vida Moderna", no qual ele enfatiza a solidão do indivíduo na era moderna e a busca por uma autenticidade na experiência humana.

A fotografia é, em última análise, uma solidão íntima, cujo estilo é a relação direta e imediata do homem com seu semelhante, na interação solitária entre o observador e o observado, entre o artista e o objeto retratado, entre o modelo e o fotógrafo. Os retratos de “The Disruption Portraits” de Hill e Adamson, e a foto histórica de Louis Daguerre, “Boulevard du Temple”, quando relacionadas ao pensamento de Benjamin e ao sentimento de solidão mencionado por Baudelaire, oferecem uma perspectiva fascinante sobre a fotografia como uma forma de arte que captura a realidade objetiva, ao mesmo tempo em que evoca a introspecção e a solidão do sujeito retratado. Essas imagens transcendem a mera representação visual, convidando-nos a refletir sobre a condição humana, a experiência da modernidade e a busca por uma conexão autêntica: "É um eu insaciável do não-eu, que a cada instante o revela e o exprime em imagens mais vivas do que a própria vida, sempre instável e fugidia.". Através dos registros fotográficos, a possibilidade de sentir de forma poética, os sentimentos e sensações vividas no passado se abre para o homem contemporâneo “É à luz dessas centelhas que as primeiras fotografias, tão belas e inabordáveis, se destacam da escuridão que envolve os dias em que viveram os nossos avós”. E assim, quem sabe, compreender o passado, e melhorar as relações no presente, já que a solidão humana, vem se fixando em suas raízes, tornando o futuro, que já se distancia do que um dia foi a modernidade, refém dos sentimentos modernos. “Não se pode interpretar a obra a partir da vida. Mas pode-se, a partir da obra, interpretar a vida”.








Bibliografia:


BAUDELAIRE, C. "O pintor da vida moderna" IN: A modernidade de Baudelaire. Apresentação de Teixeira Coelho; tradução Suely Cassal. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

BENJAMIN, W. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”; organização e prefácio Márcio Seligmann-Silva; tradução Gabriel Valladão Silva. - Porto Alegre, RS: L&PM, 2019.

BENJAMIN, W. “Pequena história da fotografia” IN: Obras Escolhidas: Magia e técnica, arte e política. Prefácio Jeanne Marie Gagnebin; tradução Sergio Paulo Rouanet, editora brasiliense, 1985.

SONTAG, Susan (I). Sob o signo de saturno. Trad. Ana Maria Capovilla e Albino Poli Jr. Porto Alegre: L&PM Editores, 1986, p. 87


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